domingo, 24 de abril de 2011

Dossiê memória

E estava intacta, quase só. O frio, o vento, o ar... Tudo conspirava a seu favor. Era exatamente a noite tipicamente perfeita para ela, quase só. E tomava um vinho seco em sua taça preferida, fazia cara de quem adorava aquele gosto meio amargo-meio doce. Sentava numa poltrona aconchegante situada em sua sala, em roda de uma lareira vermelha, enfeitada de fotografias e porta-retratos de pessoas já falecidas e até de outras gerações. Pegava um livro que sempre lia todas as noites para si mesma. Lia em voz alta, pois achava muito mais emocionante quando a história é narrada assim. O problema - que talvez nem seja um problema, apenas uma condição de que isso pode ser um problema - é que era sempre a mesma história, os mesmos personagens, o mesmo enredo, as mesmas tramas, as mesmas emoções, reações inesperadas e surpresas. Ficava ali, quase só, todas as noites em que o vento ganhava vida e o frio congelava seus dedos. Era um reflexo perfeito de uma vida cheia de caídas e perdas. Nos seus olhos, já marejados, não há paz. Nas suas mãos, já cansadas, há um livro. Poderia ser um livro qualquer, mas não é. E não é só pelo fato dele ser lido todas as noites em todos os anos já vividos - se é que se pode chamar isso de vida -. Mas sim pelo fato de ser um livro meio auto-biográfico, contando a história de uma vida quase só. Foram tantos lugares que poderiam ser visitados, foram tantas histórias que poderiam ter tido um outro fim. Não tiveram. A noite fria continua a mesma, o livro continua com a mesma quantidade de páginas, a história com o mesmo fim. Quase um dossiê memória. Quase só.

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