sábado, 10 de março de 2012

Um olhar escondido

   A vida de Alicia era amargurada como a minha. E talvez eu devesse me calar ao invés de julgar a amargura da vida alheia, sabendo que a minha amargura é ainda pior, ou quem sabe, tentar encontrar justificativas das quais a vida das outras pessoas é amarga para que só assim eu consiga justificar a minha própria amargura. Se fosse simples, eu teria o feito.
Como se não bastasse ser amarga, Alicia ainda tinha que aguentar pessoas chatas e idiotas reclamando sobre o refrigerante que passou da validade ou o suco de saquinho que não diluía – tendo em vista que ela trabalhava em uma central de atendimento de três empresas conjuntas. Às vezes, ao invés de simplesmente atender a telefonemas, também tinha que ligar para oferecer brindes e pacotes promocionais, tendo que ser carismática o suficiente para que o cliente aceite a proposta precedida.
No entanto, ninguém jamais imaginara que por trás daquela garota amarga e estressada (com toda razão, é claro), havia uma grande pintora de rostos. Nas horas vagas ela saía de casa para encontrar mendigos, pessoas estranhas, drogados e qualquer face que pudesse vir a surgir um quadro bonito. E se curvava a cada pintura, olhando cada vez mais fundo nos olhares, testando cores e contrastes para que houvesse sintonia e harmonia em suas pinturas.  Embora ela quisesse expor mais alegria em seus trabalhos, raramente o conseguia. Alicia tinha uma obsessão por pessoas misteriosas e talvez seja por isso que suas pinturas quase sempre saíam estranhas.
Passado algum tempo sem pintar, seja por falta de vontade ou por fracasso emocional, Alicia resolveu procurar um circo em sua cidade, pois pensava que se ela fizesse a face de um palhaço sua pintura ficaria mais alegre e ela poderia ser reconhecida cada vez mais. E acabou encontrando o palhaço Xita, que aceitou a proposta de ser pintado.
Alicia não conseguia demonstrar nenhum tipo de emoção quando pintava. Algumas pessoas julgavam-na como louca, pois ela saía do mundo da realidade e entrava para o seu próprio mundo, da qual ninguém mais fazia parte. Poderiam cutucá-la, falar com ela, gritar em seus ouvidos que ela, ainda assim, ficava imóvel, apenas se concentrando na pintura que estava fazendo. Com o palhaço Xita não era diferente. Ela o mandou sentar em uma cadeira ao ar livre e pediu para que fizesse a expressão facial que quisesse. Ele logo sorriu, como todos os palhaços fazem.
Quem visse seu sorriso não imaginaria tamanha dor que dentro dele latejava peito adentro. Mas Alicia viu e sentiu, como se a dor fosse sua também. Raramente ela percebia o que se passava dentro de alguém.
Ao terminar a pintura, o pessoal do circo, amigos de Xita, estavam ansiosos para ver como a pintura havia ficado, mas Alicia não deixou ninguém ver e pediu para que todos eles a deixassem a sós com Xita.  Foi então que tudo parou. Alicia pegou na mão de Xita e disse o quanto sente muito pela morte de seu filho. Xita ficou perplexo, pois não esperava que ao invés de mostrar-lo o quadro, Alicia se lamentasse por uma coisa que ele não havia contado à ela e muito menos a ninguém. Ela percebeu a dúvida no ar e mostrou a pintura à Xita, que pôs-se a chorar. Ele esbanjou toda sua dor e gritou enlouquecidamente o que sentia.  Todos os seus amigos que antes se perguntavam por que tamanho escândalo, ao verem a pintura perceberam que o retrato de Xita era um palhaço chorando, embora sua expressão facial ao ser pintado foi um sorriso de orelha à orelha.
            Alicia se retirou do local, levando o quadro consigo e apenas uma resposta: não se pode esconder o que os olhos entregam, nem tentar sufocar a própria dor no peito.  A resposta sempre estará no olhar.

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