sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A rua

Quando os olhos deles se encontraram, havia algo que os dizia para seguir em frente, como se Selene soubesse que, na realidade, não precisariam mais conversar, trocar ideias, brincar, discutir, sentir - eles tinham que seguir em frente. No meio  dessa confusão melancólica entre o sentir-falta-de-te-olhar existia algo a mais naquela cidade minusculamente que só os faziam ter certeza de que talvez eles precisassem estar em outro lugar e, estando em outro lugar, estariam onde deveriam estar: juntos. Mas o romance começou a entrar em apuros e a estória de anos vivida, sofrida, centímetro por centímetro de seus corpos, demonstrou um torto e afetado cenário: não haviam respostas para justificar as suas dores, mas havia amor para perdoar até o imperdoável. E Selene confortava-se de que o certo, mesmo que errado, estivesse certo para si. Repetia inúmeras vezes com a cabeça grudada no travesseiro porque a vida deitada era mais emocionante que a vida em pé que ela não precisara sentir nada disso, que ela precisa ir conhecer mundo afora, fazer uma caminhada, ir ao Redenção. Precisara sentir a brisa do mar.

Não se convenceu.
Percorreu horas a fundo em seus pensamentos perguntando-se onde ele andará, onde andará suas emoções e seus pensamentos também. Sentiu-se desolada, impotente, incapaz de segurar-se que ela mesma não iria, de novo e de novo, ter que enfrentar isso. Mas está passando por isso e estava ciente de que precisara responder por suas ações. 

Entre o final da noite e a madrugada, ergueu-se da cama, vestiu a primeira roupa não lavada que estava atirada pelo quarto desajeitado e sujo, desceu de seu apartamento de 34 andares com passos curtos e limitados e sutis e avistou a rua: uma cena onde os carros corriam próximos, as pessoas andavam separadas, individuais, sem ninguém e, mesmo que por um breve momento, não sentiu-se só, mesmo desajeitada, mesmo estando sozinha. Sentiu que a rua era onde deveria estar, que, muito embora não houvesse um lugar bacana para ir, sentiu que precisava sentir a brisa da rua, que precisava andar e percorrer todos os caminhos que ela a pudesse levar. E andou, só, sem mais lenços ou emoções, estórias inacabadas que sugam a alma das pessoas - esqueceu-se totalmente do que sentia e porque ali estava. Queria mesmo era estar no meio da rua, entre os carros, como um jogo qualquer de suicídio ou algo assim. Mas não o fez. Cruzou pela rua Santo Antônio onde ficam as principais lojas, mais caras e da burguesia estilo família-tradicional-brasileira, onde as vitrines refletiam o outro lado da rua, repleto de morros com casas mal construídas de um povo que de mal não há nenhum, mas que foram instituídos ou programados para estarem ali, também sofrendo - e pensou que se não existisse essas diferenças as pessoas seriam mais próximas, mais iguais, mais felizes; que o amor seria mais sólido e visceral, puxado lá do fundo do coração das pessoas e entregue por completo, total, profundo, enraizado e cheio e repleto para aqueles que nada sentiam antes de conhecerem a si próprio. Rodou mais algumas ruas, cruzou também pela Av. Santa Rita e ficou se perguntando porque todas as ruas tem nomes de santos, como se os caminhos só levassem a fé. Questionou a sua fé, indagou os seus deuses, pensava "será que existem?". 

Atravessou a rua e chegou a praça San Thomé, avistou o relógio central e sentiu que as horas não haviam passado tanto, que o tempo meio que parou e vagou diante de sua solidão. E percebeu que não estava, de fato, sozinha, mas sim que tinha a si mesma. Que segurava a sua própria barra e saberia que, em qualquer circunstância, ela a teria e não a deixaria jamais. Que o amor a si próprio talvez fosse a fonte de seus apuros no romance, mas que precisariam ser, pois quem não ama a si próprio não poderá jamais amar alguém.

Chegou um dia em que os olhares não se encontraram e Selene se quer se queixou desse desencontro. Que a conversa fluiu por si só, mas os olhares não se encontraram. Que ele a permitiu sentir repulso, aversão e repugnância. Porque viu, sem precisar que seus olhos se encontrassem, que a discrepância do sentir está nas pessoas e não nas emoções. Que, se não existe a proporcionalidade entre a racionalidade e o afeto, não existe, por si só, sentimento. 

Selene saiu, fingiu sorrir. Disse "boa tarde" e seguiu em frente - sabia que não precisariam conversar, pensar, nem sentir. Precisavam partir.