terça-feira, 3 de maio de 2022

Retrato vazio

Me vem um mal-estar, assim, do além. Principalmente quando começo a fazer as coisas do dia-a-dia; quando lavo uma louça ou uma roupa, quando cozinho alguma coisa, quando preciso meramente escrever algo do trabalho. 

É como se estivesse contido dentro de mim uma mistura de sentimentos ruins que começam a emergir, todos juntos, mas consigo sentir na individualidade cada um.

Primeiro sinto a garganta trancar, depois sinto uma sensação de "queimação" no nariz e por último meus olhos liberam lágrimas. Bem assim, mas não necessariamente nessa ordem.

E aí começo a tentar entender o que é se passa na minha cabeça quando tudo isso começa a sair. O primeiro sentimento que me vem na cabeça é a nostalgia. Tudo que eu faço, me lembra, de alguma forma, como era antes. E eu sei que eu não posso voltar atrás, mas ainda não consegui aprender a tirar o peso das minhas costas da decisão que foi errada para mim. O "antes" que eu me refiro era como minha vida era antes de eu ser assim - algo que eu ainda não descobri, mas que parece ter me modificado de uma forma imensurável. Eu entendo que preciso ressignificar quem eu sou. Que eu continuo sendo a mesma, mas olhando de uma perspectiva diferente, com um amadurecimento emocional e fortalecimento internos muito expressivos agora. Mas eu era feliz antes. E era uma felicidade genuína: eu tinha uma casa que eu chamava de lar, compartilhada com dois gatos que eu jurei ser responsável e cuidadosa, e partilhada de afetos com o meu amor. Tinha um trabalho que eu amava fazer, pois me proporcionava conviver com pessoas que eu gosto. Agora parece que até o sorriso posto em fotos é um retrato vazio. Que o acordar é só pra me lembrar que não existe mais nada aqui dentro desse imóvel que eu tento, juro que tento, chamar de "meu lar". Que não existe ninguém dentro desse imóvel pra eu chegar do trabalho e compartilhar o meu dia, por mais monótono que ele seja. Que agora tudo tem que ser por vídeo ou ligação. Não existe o físico, o contato, a presença. Existe angústia e aflição por ter que contar os dias e olhar o relógio ininterruptamente pra ver o meu amor, pra sentir alguma coisa diferente daquilo que parece ser o meu novo "normal". Eu até tento fazer coisas diferentes, sair jantar na casa das amigas, tomar chimarrão na frente do prédio, dar uma caminhada, ir em algum lugar fazer alguma burocracia chata do dia a dia. Até fui à lotérica realizar o pagamento de uma conta (sendo que eu faço isso sempre online), só pra fazer uma coisa diferente. Mas é tudo tão igual sempre. Me locomovo olhando pra baixo, porque eu não tenho vontade de ver a luz do dia. Porque eu não sinto vontade de ver a cara das pessoas. Porque elas me cansam. Porque elas me lembram que eu não sou feliz assim. Porque porto alegre tem me colocado pra baixo. Pessoas na rua, morrendo de fome, sede, frio. Pegando chuva. Sem nada. E eu aqui, com meus privilégios, minha cama quente e meu leite morno, "reclamando" da forma como a minha vida anda. Tudo me afeta. É sobre acordar cedo, ter coisas pra fazer e fazer tudo tão calmamente, mas sem sentimento, sem pertencer. Não sinto vontade de tomar banho e vou dormir. Acordo. Parece que todos os meus problemas sumiram. Me alimento. Faço um café digno de hotel. Tomo os meus remédios. Assisto série. Todo banho. Arrumo a casa. Penduro decorações na casa. Me sinto a pessoa mais independente emocionalmente possível do mundo de todos que me cercam. De repente, vem uma felicidade e gratidão imensa por tudo que eu tenho e construí. Me vem uma vontade imensa de viver e estar ao lado de todos que eu gosto. Faço planos. Imagino um futuro diferente. Imagino como vai ser quando eu for nomeada e a festa imensa que eu vou dar porque isso me deixa puta orgulhosa de mim, de todo o esforço e dedicação que eu coloquei em cima desse sonho. De tudo que ele vai poder me proporcionar a longo prazo, como estabilidade, dinheiro para os meus luxos, vícios e pra cuidar de mim. Imagino a minha casa própria. O meu carro próprio. Imagino quantos cachorros e gatos de ongs eu vou ter e quantos mais eu vou ajudar a resgatar e ser lar temporário. Vejo que eu tenho sonhos (e muitos) e que basta um empenho meu para que muitos deles se realizem. 

Mas sempre parece ter algo em mim que me barra de enxergar tudo nessa perspectiva boa. Sempre. Parece que meus dias vão ser sempre nesse looping entre ficar triste e ficar feliz. E isso vai me remoendo aos poucos, me consumindo, mas principalmente, me deixando cansada. 

Escrevo tudo isso que é pra me lembrar que sempre existirão dias assim, em que a vontade de ficar anulada numa cama com as luzes apagadas é maior do que qualquer outra coisa nessa vida. Mas me tranquilizo e peço calma. Os dias hão de ficar bons.